Publicado em 31/12/2020 - nilson-bortoloti - Da Redação
Nas minhas andanças pela Praça dos
Andradas, quase sempre me deparo com um velho negro, assentado num dos três ou
quatro bancos que elegeu, conforme o posicionamento solar.
Já o
vi andando, cedinho, muito devagarinho pelas ruas da cidade, trajando o seu
indispensável bonezinho. Não cumprimenta ninguém, não conversa com ninguém. O
seu mundo parece ser outro. Parece estar completamente alheio àquilo que está à
sua volta.
Numa
manhã chuvosa e fria, estava ele sentado num dos seus bancos, guarda-chuva
aberto, quando foi abordado por uma senhora, que lhe recomendou que ficasse em
casa, aproveitando a sua cama, ao invés de ficar exposto daquela maneira às
intempéries.
Continuou
mudo, ensimesmado no seu mundo particular. Suponho que pelo fato de não ter
ouvido a proposta (notei que ele usa um aparelho de surdez). Ou terá sido um
silêncio eloquente diante da petulância de quem o queria tirar do seu
ensimesmamento?
O
velho talvez nada saiba sobre o coronavirus, sobre a irresponsabilidade
criminosa do presidente. Não sabe quem é o presidente dos Estados Unidos, nem
que o Brasil tem treze milhões de desempregados. Ele alienou-se de tudo isso em
benefício de uma autocontemplação muda e serena.
Intuitivamente, concebeu que nada pode contra estes temas tão dramáticos
e tão distantes de sua reduzida força. Preferiu a introspecção.
O olhar
de aceitação, de resignação, de distanciamento fazem-me lembrar o poema
“Motivo” de Cecília Meireles, que num dos trechos exalta: “eu canto porque o
instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre e nem sou triste;
sou poeta.”
Não sei
se o velho tem família, não sei seu endereço. Já vi pessoas tentando conversar
com ele; mas ele parecia incomodado com aquilo. Seu olhar contemplativo no horizonte,
indecifrável, sem esboçar a menor reação, é muito intrigante.
“Não sou
alegre e nem sou triste”; “sou humano”, poderia acrescentar o velho. E, ainda:
“ Nada mais espero, nada mais quero, além da minha solidão e da minha paz. Não
me incomodem, por favor. Não me convidem para jantares caros e nem para viajar
para a Europa. Não vou. Não me interessa.”
“Guerras,
revoluções, luta de classes....não, não são comigo”: ‘minha vida está completa.’
Só aguardo, sem nenhuma ansiedade, o dia
em que serei levado não sei para onde e nem sei se existe o onde: este há muito
deixou de ser objeto das minhas indagações. Minha alma está serena e o meu
coração não guarda rancor. Quando quiserem me levar que o façam. Não precisam
gravar nada na lápide do meu túmulo, não quero ser lembrado nem pranteado”.
O velho da
praça me faz lembrar a figura de Diógenes que viveu no século IV a.C.. Dizem
que o filósofo
Diógenes, com uma
lanterna procurava um homem honesto. Desiludido de sua busca, recolheu-se numa
caverna para viver como eremita. Alexandre, o Grande, o homem mais poderoso da
época, vai buscá-lo do seu autoexílio e lhe pergunta o que ele desejava para
sair daquela sua vida de penúria. Diógenes, em pronta resposta, teria pedido
para que Alexandre saísse da entrada da caverna porque a sua figura estava
impedindo a penetração total do sol na sua morada.
Paradoxalmente,
a consciência da brevidade do tempo deveria servir de alento para uma vida mais
serena e menos ansiosa e deveria se prestar à nossa reflexão da inutilidade de
tantas coisas que nos ocupam.